Queimando Filme

O crítico de cinema Cléber Eduardo usa a primeira pessoa

Thursday, February 23, 2006

UM CHARLES E DOIS JOÃOS


Quer dizer então que, para se obter financiamento público para qualquer expressão cultural no Rio de Janeiro, via gestão municipal, é preciso "eleger" como tema, se quiser o dindin, a chegada de D. João VI ao Brasil. Ahan!


Mas vou pensar de um jeito menos carrancudo e tentar entrar no espírito da anedota histórica.


Estou finalizando com minha namorada, Ilana Feldman, um curta-metragem chamado Almas Passantes. O filme acompanha um percurso de João do Rio e Charles Baudelarie pelo Centro do Rio. João do Rio vem do início do século XX. Baudelaire, de meados do XIX. Mas eles se encontram hoje, sabe-se lá graças a qual tecnologia propiciadora de viagens pelo tempo, sabe-se lá se graças ao fato de serem zumbis batedores de pés ou fantasmas desrritorializados. Hum! Desespacialização e destemporalização. Parece vacina contra a historicização das experiências. É o acúmulo das historicizações, porém, sem paredes isolacionistas.

Podemos reciclar a proposta e adequá-la ao ciclo D João VI.


D. João VI chega ao Brasil, ao Rio, em 2006, com amnésia. Não lembra de nada. Não sabemos se é um fantasma, se pegou a caravela do tempo ou se é um zumbi de George Romero. Na falta de Romero, vamos de Fabio Barreto.

Vagando pelo centro, D. João encontra João do Rio, que o reconhece, e Charles Baudelaire, que já ouviu comentários sobre João VI. O cronista e o poeta o levam para lugares que possam despertar a memória do imperador. Ele nunca ouviu falar do Brasil. Precisa redescobri-lo.

No meio da deambulação, depois de traçarem um frango a passarinho em um pé sujo, os três param diante de um centro cultural, cuja atração é um ciclo de curtas e longas sobre D João VI. Ao avistarem o imperador, prefeito e secretário correm para cumprimentá-lo, agradecendo por ter aceito o convite para comparecer ao coquetel de abertura do ciclo. D João começa a fazer cara de que está lembrando de algo, dele, do país, do convite.

No meio da sessão, D João, Baudelaire e João do Rio saem, com caras de poucos amigos. Talvez com a memória refeita, o imperador interpela as autoridades municipais e cobra o pagamentos de royalties pelo uso de sua imagem - e ameaça entrar com processo por difamação. Vendo o factóide se instalar, João do Rio, que sabe como as coisas acontecem na cidade, e Baudelaire, que já aprendeu duas ou três coisas sobre o Rio, saem caminhando pelas ruas e largam o imperador com o alcaide.

Esse post não foi patrocinado pelo programa dirigista D João VI.

Pré Carnaval


Antes de cair no samba nos gramados de Teresópolis, queimo mais algumas pontas de neurônios por aqui. O que ia dizer mesmo? Esqueci...


Deixa pra volta, pós quarta de cinzas. Cinzas. Queimando Filme. Cinzas. Tudo a ver.


Até mais ver

Sunday, February 19, 2006

Take 2 - Na Boca da Noite - Walter Lima Junior


Nunca tinha visto Na Boca da Noite (1970, foto de Ruben Correia), de Walter Lima Junior, filme do qual sabia apenas informações de produção, como a filmagem em poucos dias, em 16mm, com recursos precários, em um momento de asfixia política no país, sob a nuvem negra do AI-5. O Cinema Novo não pautava mais sozinho as formas de representação da reação ao momento histórico. Tinha a companhia de um primo avacalhado, anárquico, apelidado de Cinema Marginal, que não tinha projetos ou utopias, apenas sarcasmo e um ceticismo histriônico. A potência da descrença, se é possível falar assim. Na Boca da Noite não ficou imune a essa vertente mais desconjuntada. Passou no domingo 19, sessão Cult, do Canal Brasil, apresentada por Leonna Cavali (xi, não confiro grafia nenhuma aqui, é território do erro)

Lima Junior é um cineasta sempre preocupado com a imagem, em como usá-la para criar certos efeitos e construir universos específicos (Ele, o Boto, A Ostra e O Vento), sem o compromisso limitador com o realismo. Uma primeira mirada para os extensos planos sequências do filme e para as atuações com todo jeito de laboratório de improvisação, de Rubens Correia e Ivan de Albuquerque (já protagonistas da montagem carioca da peça de Zé Vicente, matéria-prima adaptada pelo roteiro do filme), demonstra a disposição de recusar os códigos de verossimilhança e afirmar uma assinatura estilística, autoral, com a exacerbação da mise en scéne como forma de revelar o artíficio usado para tornar as cenas sufocantes justamente por conta de seu esvaziamento dramático.

O desleixo das atuações, no caso, são conceituais, isso é evidente. Assim como a coreografia nem sempre bem ensaiada da câmera. É perceptível a proximidade com Câncer (Glauber Rocha, 1966), não apenas por conta da política do plano-sequência e da improvisação, mas também pelo grau de desbunde em seu discursivismo político, embora, em Na Boca da Noite, não haja nem sombra do vociferante sarcasmo glauberiano. Na relação comercial e de poder que se estabelece entre um bancário e um faxineiro, com a conscientização e as intenções revolucionárias do dominador reproduzindo a dominação contra a qual parece estar se inssurgindo, Walter Lima Jr acentua o caráter de impasse de sua própria classe social e de sua condição de cineasta, escancarando a questão da manipulação de uma classe pela outra (de imagem de classe, no caso dos cineastas).

Tanto o formalismo com sede experimental dos planos sequências como o discursivismo de síntese de relação de classe está sempre ameaçando asfixiar a potência da própria forma proposta. Conceitos e intenções, quando articulados em sons e imagens, não necessariamente surtem efeito (por mais que, nesse caso, o critério seja pessoal, o de estabelecer o que, em última instância, surte ou não efeito).

Na Boca da Noite foi filmado em 1970 e só lançado em 1973, revelando que a precariedade, presente na imagem reveladora de sua produção, extendia-se à exibição, sempre exilando os filmes da casa e deixando-os do lado de fora da porta. É um filme ensaio, característica que, "estimulada" pela falta de estrutura de sua produção, é sua potência, mas também seu limite.

Primeira Pessoa




Em breve, eu, Cléber Eduardo, estarei aqui. Primeira pessoa pela primeira vez. Mas só daqui a pouco. E acho que uso, pela primeira vez, porque, em um mundo de invasões de privacidade, um cantinho virtual, sem avisar ninguém dele, pode ser uma invisibilidade, perdida entre tantos fragmentos virtuais. Vejamos. Ou, verei?

Take 1

CARL DRYER
A primeira pessoa. Ao lado, a terceira, Ele, o Cristo, ou melhor, Johannes, que se acha Cristo em Ordet, a obra-orima do dinamarquês Carl Dreyer. Como nunca, até segundos atrás, a primeira pessoa. Palavras de vertigem, idéias à deriva, dúvidas travestidas de convicção, queimando certezas, incendiando questões. Sensação de aventura. A fluência não quer pegar de primeira, travas quaisquer ensaboam os teclados para o sentido das teclas escorregar, uma incerteza de primeira vez.

Três filmes de Carl Dreyer em um domingo. Dias de Ira, Ordet e Gertrude. Dryer coloca o drama em voltagem alta, mesmo nas mais gélidas de suas narrativas, porque não dramatiza apenas momentos chaves, mas cada partícula de seus filmes.
São dramas maísculos, limítrofes, que arruinam vidas, sacodem certezas e ilusões, dão rasteira em personagens. O cineasta é dinamarquês como Lars Von Trier e, sim, Lars Von Trier é devedor de Carl Dreyer, mas sem o mesmo senso do fantástico, do espiritual, da abstração, com exceção feita a Ondas do Destino.

Dreyer também não tem o cinismo e o sarcasmo de Lars Von Trier, demonstrando, em cada uma de suas imagens, uma crença aguda no universo criado por suas opções como diretor. Dreyer jamais está contra seus personagens, mas com eles, solidário a eles, mesmo em momentos de fúria da vida contra esses seres.

É impressionante como esses escandinavos parecem culturalmente vocacionados para filmar a dor humana no fio da navalha. Sjostrom, Dreyer, Bergman, Von Trier. Não dosam o sofrimento imposto aos personagens. No entanto, quando, em alguns desses filmes, ao final dos machucados épicos no tecido de emoções, o humano resiste, supera os obstáculos da sociedade e do acaso (ou da natureza), demonstrando, no final das contas, um saldo de superação.

Dreyer filmou de 1917 a 1964. Seus filmes silenciosos (A Quarta Aliança da Senhora Margarida e Mikael) são mais ou menos próximos, com um casal de jovens, nos dois casos, tendo de enganar alguém mais velho (um senhora viúva no primeiro, um pintor no segundo), que, em sua trajetória, simboliza o obstáculo para a satisfação do desejo carnal e das demandas afetivas. Nos dois casos, os mais velhos são arquivados, não sem deixar suas marcas e ensinamentos por meio da culpada tomada de consciência dos jovens, mas predomina a aguda ciência da vida como cilo, como percurso que, em um dado tempo ou em dada circunstância, é finalizado cruelmente.
Com uma brilhante e perturbada dinâmica de câmera e de cortes, que flertam com vanguardismos de enquadramento e encadeamento na parte final, O Processo de Joana D`arc (1927) introduz a mitificação da crença no sagrado, naquilo que não se vê, mas que se sente e que se acredita como poder transformador. A questão é retomada em Ordet (1964), meu filme preferido de Dreyer, em que, no lugar de Joanna, temos Johannes, um ex-estudante de teologia que, durante uma crise de fé, passou a ser achar a reincorporação de Cristo. Dreyer filma em longos planos sequências e, mais uma vez, um obstáculo da "sociedade" atravessa o caminho de um casal de jovens. Nesse caso, a religião. A conciliação virá com uma morte e, após essa luz redentora das trevas, um milagre, o maior deles, premia a conciliação e a fé no impossível, já que a fé no provável, para Johannes, é uma fé indiferente.
Os planos-sequências também são longuíssimos em Gertrude, filme com atuações sorumbáticas, planejadamente esvaziadas de emoção, algo ainda mais estranho por, paradoxalmente, a protagonista falar parte do tempo em paixão. Gertrude é, junto com o Vampiro (experiência no fantástico mais rasgado, com sinais expressionistas e de vanguardas dos anos 20), a obra em que Carl Dreyer, sem abrir mão de seu percurso narrativo, mais estetiza o enquadramento. Se em O Vampiro essa estetização, de dinâmica mais espetacular, se dá no impacto da mise en scéne, na composição evidenciada como tal e em passagens de dinamismo na fluência dos planos, em Gertrude, sem deixair de compor os planos, Dreyer opta por uma encenação de um rigor pesado, desvinculado do cinema de seu momento (1964), quase um ET em sua dinâmica. Quem nada conhece que inspire-se a ir atrás. Quem conhece, suponho, sentiu a força de Dreyer.

Primeiro pessoa ainda está parcimoniosa