Falcão - Denúncia ou Inspiração?
Foi histórica a exibição de Falcão, o documentário de MV Bill e de Celso Athayde, na grade de programação do Fantástico: quase uma hora de imagens e depoimentos de crianças vinculadas ao tráfico e de suas mães falando da condição dos filhos. Minha classificação de "histórico", no caso, tem uma dupla razão. Uma é a exibição dessas imagens e palavras no horário nobre dominical da Globo. A outra é a existência dessas imagens em si. A novidade de Falcão, em meu entender, não está na denúncia. Qualquer ciadadão minimamente informado supõe como é a vida de uma criança do tráfico e quais as razões de sua entrada precoce para o crime: ausência de autoridade ou excesso de autoritarismo do pai, desejo de poder e "respeito", acesso ao consumo e às mulheres, falta de horizontes profissionais e uma enorme atração pela atitude imagética dos bandidos, com suas armas proibidas e sua indumentária de revolucionários.
Ignorar essa situação ou se surpreender com ela, convenhamos, é sinal de um certo "marcianismo" de quem vê. Naquele livro do Zuenir Ventura, Cidade Partida, publicado ainda nos anos 90, há mais de 10 anos, havia uma entrevista, no final, em que um traficante, chefe da boca em Vigário Geral, sintetizava a situação de Falcão. Denúncia já conhecida, portanto.
A novidade das imagens captadas por Bill e Athayde, na verdade, está na entrada de uma câmera nos bastidores do tráfico. Existe um limite para quem filma o universo do crime, sobretudo se quem filma é de classe social diferente da do criminoso. MV Bill, hoje um rapper conhecido e consumido pela classe média, não teve esse problema. Foi passos além de Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles, para mencionar exemplo conhecido de quase todos nós (nós frequentadores de blogs de cinema).
Nascido na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio, Bill "é um deles" por sua origem. Não está lá como turista. Fala de igual para igual, olho no olho, com a língua contundente, sem medo de questionar. Essa atitude, mais a existência de imagens e frases de pessoas e lugares proibidos para as câmeras, é algo inédito. Bill levou uma digital onde uma digital está vetada.
Questiono, sem certeza, o procedimento. Tentarei me fazer entender com muita clareza para não haver alterações de sentido em minha colocação ainda cheia de dúvidas. Não sou contra imagens fortes, que nos agridem com aquilo que talvez prefiríssemos ignorar, mas, quando a questão em jogo são imagens, há um dissonância entre intenção e efeito. Bill tem o objetivo de dar imagem ao que não tem imagem no cotidiano. Podemos ler a respeito do assunto, mas não vemos as vidas, a casa, as mães, os sonhos e as expectativas desses jovens. Nas TV, eles aparecem à distância, atirando ou mortos. Nos parecem apenas signos de uma marginalidade que, uma vez feita a opção pelo crime, está condenada a virar estatística e manchete de jornal, ou referencial às avessas para jovens de suas comunidades. Não são indivíduos, não pensam, não sonham, não têm necessidades. Apenas carregam armas, atiram, matam policiais e ameçam o sono da classe média.
Em Falcão, mesmo com o rosto coberto, eles são humanos. Não importa se matam , roubam e vendem drogas, pois o ser humano, quando colocado em determinadas circunstâncias e necessidades (não escolhidas por ele), é capaz de fazer tudo isso e bem pior, sem deixar de ser humano. O humano compreende o pior e o melhor do homem. Essa imagetização da vida para se quebrar a frieza dos números e do noticiário é um dado francamente positivo de Falcão. A inclusão de um momento lúdico, primeiro com o sonho de um jovem em ir ao circo, depois com imagens do circo, saliente esse esforço de MV Bill.
Mas a imagem, seja qual for (umas mais que as outras), é pura ambiguidade. Ainda mais quando, como em Falcão, referem-se a um universo movediço, diante do qual, com uma câmera na mão, o registro visual é paradoxal, podendo resultar no contrário do planejado. O encadeamento de enquadramentos espertos, a trilha-sonora de Bill, os rostos cobertos, as armas empunhadas, as frases sobre a consciência da proximidade da morte, o discurso de macho sem medo e a postura de transgressão da ordem institucional, que, na própria lógica verbal dos entrevistados, está conectada à sua marginalização social (pré-tráfico), cria um tecido audiovisual de estética fascinante para quem, já atraído por esses signos, tende a ver nesses rapazes os neo-heróis da resistência contra a invisibilidade social.
Traficante, sobretudo no Rio, é midiático. Isso os legitima culturalmente de alguma forma. A guerra deles vai para jornal e TV. Fico aqui pensando se mostrar brincadeira de criança na favela imitando detalhadamente o movimento do tráfico, assim como sua dinâmica de justiciamento, é mesmo uma denúncia como deve acreditar Bill ou um reforço visual para o imaginário criminal de crianças e adolescentes. Se os bandidos têm forte apelo para esses meninos e meninas, multiplicar esse apelo em rede nacional, mesmo vinculando-o a histórias de morte, pode obter efeito contrário ao pretendido por Bill.
João Moreira Salles já escreveu e afirmou em palestras que, no Brasil, nos protegemos das imagens de violência na imprensa. Jornais e noticiários nos poupam da imagem dos mortos. Isso é negativo na visão dele, pois, sem a imagem, banalizamos o acontecimento. Ele passa a existir menos, digamos assim. Susan Sontag realtiviza essa visão em seu livro Diante da Dor dos Outros. Acha necessária a publicação de imagens violentas, mas acredita que, por outro lado, essas imagens tendem a perder o significado, se recorrentes, e passam a existir apenas como signo visual, transformando denúncia em espetáculo mórbido, consumido como entretenimento, não como sinal de realidade. Guy Debord, o autor de Sociedade do Espetáculo, se visse Falcão, certamente, nos próximos dias, estaria escrevendo a respeito, talvez confirmando sua visão de que, no terreno do espetacular (a comunicação de massa), não nada além de espetáculo, não importa com o que ou com qual intenção.
Pergunto aqui se essas imagens de Falcão são violentas ou atraentes para certos olhares. Elas não teriam recepções diferentes, como toda imagem, se assimiladas por pessoas de vivência distinta? Então, é o caso, mais uma vez, de questionar: para quem se dirige Bill? Para uns (a elite), para outros (os pobres), ou para todos? Honestamente, questão pantanosa. Porque se for para uns, há risco de o material ficar sedutor, menos porque assim é filmado e editado, mais porque o que se mostra, antes de se mostrar, já tem forte carga de sedução. Se for para outros, predomina a resignação, a constatação, impregnada nas falas, que nada há a fazer.
3 Comments:
eu mesmo fiquei fascinado com as imagens de armas, atirando ou posando na mão das crianças, fico imaginando as crianças de lá ou ao redor vendo isso - ainda mais com os depoimentos que a arma traz respeito e mulheres...
mesmo a simples coisa de radiotransmissores sendo usados como numa operação militar fascina, uma mini-guerra particular com códigos, inimigos, estratégias...
A novidade está em como e quando o velho é "revelado". Nada é novo a rigor. O novo é o velho com pertinência.
realmente o tema não é novo, mas mostra a realidade que todos conhecem mas fazem questão de esconder, preferem a "REALIDADE" bonita da novela, quanto as imagens num é por que aparece num documentario que vai ter a glamuralização e as crianças vão querer usar e ser bandidos porque essa realidade elas jah vivem todo dia. Náo são as cenas documentario que vão influenciar as crianças e jovens a entrar pro trafico, muitos falam da violencia na favela escrevem livro e tal, mas numca pisaram o pé em uma, o bil não ele eh d lah sabe o que falar.
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