Queimando Filme

O crítico de cinema Cléber Eduardo usa a primeira pessoa

Friday, March 10, 2006

Xeque Mate no Match Point



Pela primeira vez, aqui em Queimando o Filme, surge uma discussão a partir de um post, o de Ponto Final, ou Match Point, que trazem questões interessantes, seja no nível da subjetividade dos participantes, seja em relação à uma articulação das situações do filme. Resolvi, devido aos comentários, retornar, sem rever, ao filme em discussão. E a discussão fica melhor, agora, porque existem duas mãos: a dos defensores convictos e a dos narizes torcidos. O meu deve ser o mais torcido, pois, na experiência sensorial ou na reflexão mais distanciada, o filme realmente não colou em mim.



De todos os posts tendo a me aproximar mais da mensagem de RD (o Renato Doho, seja bem vindo), que problematiza, assim como Michel Simões e Cassio Pereira (bem vindos também), a construção do personagem do tenista Chris Wilton, interpretado por Jontahan Hys Meyrs. Já Leonardo Mecchi, de forma pertinente, questiona: será Chis um alpinista social? Ou apenas um pragmático?

Acredito que, se nos atermos em cada imagem desde o início, nada nos explicitará, por assim dizer, o alpinismo social de Chris. Mas a soma das partículas e a atuação de Jonathan Hys Meyers podem sim nos levar à essa constatação. Que partículas são essas? A primeira delas é a própria oferta de sua mão de obra para um clube de milionários. Isso é salientado quando, ao encontrar um colega do tênis profissional, ele afirma mais ou menos assim, de modo a explicar seu abandono das quadras: "cansei de ver a bola cair do lado errado".

Como a questão da sorte e do azar são centrais na narração, mesmo a questão social-moral sendo a protagonista das cenas, há uma ponte entre recusar-se a ser vítima de acasos (o tênis) e optar por uma atividade onde possa ter mais controle sobre os resultados. Digamos que, para um pragmático oportunista e ambicioso (e ele assim quase se auto-define), a escolha da atividade de professor de milionário não é assim tão casual.

Também não ignoro que a origem social e nacional dele, irlandês de origem modesta, é uma questão e tanto em algumas imagens e diálogos. Ele está sempre querendo pagar, pede frango assado no restaurante chique (melhor pedir de vez uma coxinha, como D João VI), arrota sua condição social em vários momentos, o que, em relação a Ripley (uma lembrança constante para mim), é uma estratégia diferente e contrária (pois Ripley disfarça a origem e se reconstrói como biografia, ficando mais próximo do protagonista de Prenda-me Se for Capaz).


Fora isso, logo após começar a se aproximar da irmã do aluno, o cara já pula no pescoço da Scarlett, e não importa que seja a Scarlet, porque, antes de mais nada, a questão ali é como eles se comportam em frente à mesa de ping pong, e a atitude de ambos me pareceu menos de te
são e mais uma informação visual sobre a canalhice de ambos (eles assim conduzem a cena aos meus olhos, mas admito que, sob outra percepção, essa cena pode significar outra coisa).

Enfim, se o cara dá mais valor ao seu tesão do que à sua condição social é porque ele é menos uma vítima da paixão (o maior acaso do filme) e mais um defensor de sua própria nova condição social. Diagamos que ele quer sair do terreno do acaso, entra em outro, perde o controle com a paixão, tem sua condição social ameaçada por essa paixão casual (como todas) e retoma o controle das coisas com o crime, mas só não é punido, como até talvez gostaria (paralelo com o Raskolnikof, de Crime e Castigo, de Dostoievski), por conta do acaso (o bracelete ou anel que não cai no rio). Nenhuma possibilidade de punição, justiça e redenção, nem pelas mãos do homem (a polícia), nem pelas mãos do acaso. Como pergunta a Ilana: como reeditar o trágico na sociedade contemporânea (e o trágico, inclusive Sofócles, é mencionado em diálogos), se não há mais deuses para punir?

E a punição maior seria retirar dele aquilo pelo qual ele pecou, algo bastante trágico, e nesse caso essa punição seria fazê-lo regredir socialmente. O que ele faz ali, enfim, é livrar-se da responsabilidade, primeiro ao matar a mulher (para não assumir efeitos de uma opção), depois ao não ser punido (pois o acaso é amoral).

8 Comments:

At 5:48 AM, Blogger Julio Bezerra said...

Cléber,
Em primeiro lugar, parabéns aí pelo blog. Em segundo, também não gostei muito de Match Point. Uma coisa que me incomodou muito e ainda não foi debatida por você ou nos comentários é o uso que o filme faz dos conceitos de sorte e azar. Tudo bem... Allen quer reformular sua crença na ausência de sentido e explicação para a vida em outros termos... mas sorte e azar podem ser associados tanto ao acaso quanto ao destino. E neste sentido o filme é muito confuso – além de me parece um tanto quanto infantil mesmo. Por exemplo: na narração o Meyers diz que é preciso ter sorte na vida e que, em determinado momento, vc pode ganhar ou perder... E os personagem vivem se auto proclamando sortudos... enfim... sei não...

 
At 1:43 PM, Blogger Cléber Eduardo said...

Julio

Essa questão é valorizada de forma quase telecurso segundo grau no filme,não achou? O tempo todo alguém diz que é preciso ter sorte, outro disse que teve azar, mas é preciso problematizar algo que às vezes passa batido quando estamos tratando de uma das vozes do filme (a do narrador-protagonista em voice-over): de onde vem essa voz? de que tempo? de quando tudo já acabou e pode ser organizado retroativamente, como um autor morto, que resume sua vida, como dizia Pasolini, ou essa narração é contemporânea à ação a nós mostrada? Porque se essa narração é retroativa ela sabe mais do que nós e está à frente da imagem, já emitindo sinais de significado que as imagens ainda não construiram. Não sei se está confuso. Mas é que essa questão de sorte e azar só pode ser uma questão quando algo já aconteceu e demonstrou que aquilo foi questão de sorte e azar, que vem a ser apenas o seguinte: aquilo sobre o qual não tivemos controle, que era ou foi importante para nosso percurso e que foi pisitivo ou negativo por situações sobre as quais não tínhamos interferência. A luta toda dele é por assumir o controle sobre uma situação. Mas ele só é salvo por conta do imponderável.

 
At 1:12 PM, Blogger Julio Bezerra said...

Cléber,
Entendo o que vc quer dizer quanto a narração ser retroativa, ao fato de que ‘sorte’ e ‘azar’ só podem ser empregados depois do evento ter acontecido. Mas não sei se Meyers foi realmente salvo pelo imponderável... De acordo com o desenvolvimento de seu personagem, posso deduzir que ter ‘sorte’ é um dado de sua personalidade. Este narrador pode muito bem ao fim concluir que o destino assim o quis. É neste sentido que acho Match Point um pouco confuso... Até porque sugerir a possibilidade da existêncio do destino me parece contradizer grande parte da filmografia de Woddy Allen... Não sei se me entende... Enfim... Creio que a questão foi mal formulada e desenvolvida no filme.

 
At 8:41 PM, Blogger RENATO DOHO said...

os bons pontos do que o filme propõe cada vez mais vêm de encontro à escolha (certa? errada?) do ator principal; no encontro com Scarlett há um tesão, mas do personagem e do público e um pouco menos do ator, confundindo as coisas

mas relembrando a cena há algo de social na coisa também, de imediato não há o tesão, mas a rivalidade do ping pong (ele é arrogante) e logo a seguir uma curiosidade e cutucada sobre o fato dela estar naquela casa, não é do mesmo nível social - isso demonstraria interesse por uma igual ou um leve desprezo (ou negação - "não sou como ela")? e creio que só depois de tudo isso que os dois jogam charme um pro outro, causando o tesão dele; para ela, como acredito que o personagem era até metade do filme, não passou de algo natural, ela seduz naturalmente, de forma distanciada, ela sempre "atua"

fica assim então, por enquanto: o protagonista é mal interpretado (escalado seria melhor dizer) e a personagem feminina é mal construída

 
At 8:36 AM, Blogger Michel Simões said...

Acho que o Cléber leu muito bem as facetas da personalidade do personagem, eu acho que ele se torna um alpinista social pela oportunidade, quando ele se vê dentro daquele mundo e com grandes chances de permanecer nele, parte para lutar com unhas e dentes para fincar de vez seu espaço. Ele deve ter pedido dicas de ópera imaginando que ricos gostam, no intuito de se aproximar, de criar laços e começar a participar daquele mundo, depois da imediata receptividade e do envolvimento com a irmã, fica difícil voltar atrás. Quanto a ser de família humilde, achei um pouco de exagero, vcs já viram jogador de tenis pobre? Ainda mais ele que jogou contra os grandes...

 
At 2:36 AM, Blogger Cléber Eduardo said...

Michel

Eu acho que ele é colocado como rapaz de origem humilde porque isso nos deixaria subtendido que o cara é capaz de vencer adversidades em sua meta de se projetar na vida. Ou seja, é um cara que se move, que não aceita o destino não. Tanto não aceita e tanto acha não ter sorte, contrariando o Julio, que ele deixou as quadras por, segundo diz ao colega de raquetes, cansar de ter visto a bola cair do lado errado da rede (ou seja, azar). E aí ele vai fazer sua própria sorte junto aos milionários e encontra na empresa do sogro a quadra ideal para a consumação de sua escalada. Um obstáculo no caminho desse alpinismo, como é uma paixão ou um tesão, tem de ser ali descartada para não atravancar o percurso. De maneira mais abstrata e simbólica, matar a Scarlet é para ele uma matáfora da morte de sua paixão, de seu desejo não material, para no lugar afirmar sua classe social, de forma racional e estratégica.

 
At 1:39 PM, Blogger Eduardo Valente said...

caralho, muita coisa pra falar, tantos temas...

tb só vi o filme uma vez (gostei muito, com eventuais reservas, mas eminentemente positivo), e sinto falta de rever antes de escrever algo realmente fundamentado, mas acho que algumas pistas foram sendo deixadas de lado, que me parecem importantes...

vamos a alguns dos temas:

Câmera - discordo, Cleber, quando vc viu os movimentos de câmera como aleatórios. há ali um reforço visual do tema do filme (cuja apresentação pelo Allen no começo me pareceu tão arbitrária e limitadora quanto aquele papo mole do Melinda, até a hora em que volta no filme e vira piada - e piada pra mim não precisa de razão pra acontecer, se basta em si quando engraçada - e eu ri) com uma constante invasão do fora de quadro, seja pela entrada de alguém que estava fora da ação, seja pelo reenquadramento, que revela outros lados dos diálogos que ouvimos (exemplo mais óbvio: encontro com a esposa na Tate Modern, fora de quadro, onde pensamos ser a Nola a princípio). a sorte está tematizada visualmente no filme o tempo todo.

 
At 1:52 PM, Blogger Eduardo Valente said...

continuando...
Alpinista Social - discordo da definição pro personagem. pra mim ele é eminentemente um cara que escolhe as saídas mais fáceis na vida, o que está posto acima de tudo pela questão do seu talento de tenista (como diz o amigo com quem ele cruza: "vc podia jogar bem contra os melhores do mundo"), e da sua falta de dedicação de levar aquilo até o fim. esta pra mim é a característica essencial do personagem, não o alpinismo social. tanto que ele aparece logo no começo largando o Crime e Castigo pra ler a versão "digest" dele - uma cena rápida, que talvez tenha passado desapercebida, mas a meu ver crucial pra definir o personagem (além de ser uma outra piada do Allen, vistas as conexões do filme com o Dostoievski - e, claro, com o Crimes e Pecados, muito consciente comparação do próprio Allen).
eu realmente acredito que ele queria acabar com a mulher quando voltam do feriado de família, mas é justamente ali que ele vê que, por incrível que pareça (e essa talvez seja a melhor piada do filme pra mim) armar aquele plano todo e matar a Nola vai dar menos trabalho do que acabar aquele relacionamento (pelo menos trabalho entendido como chateação).

Personas dos atores - concordo com um problema: a virada de Nola, tanto em se apaixonar por ele, quanto em virar uma obsessiva. no entanto, acho que o Woody escora essa virada no fora de quadro, ou no caso, no fora do roteiro, com comentários como o do noivo dela depois de acabar com ela (situação que não acompanhamos), dizendo que ela era um tanto esquisita. pra mim, tá justificado tudo.
concordo com o Renato que me importa muito pouco como o personagem do Rhys Meyers responde à ela, se nós somos enfeitiçados por ela a cada segunda que Scarlett está na tela (e, me desculpem, mas não acredito que isso seja sem querer pelo Allen não).
agora, se o Rhys Meyers é o melhor ator pro filme... não sei, mas ele me passa, acima de tudo, a coisa meio mecânica deste personagem que eu vi, que vai sendo levado pra onde o destino mandar, desde que não dê muito trabalho. eu vejo na expressão blank dele do tempo todo a possibilidade deste personagem sim.

finalmente, acho que uma cena que tb passa meio desapercebida, e que me mostra quão cuidado o Allen é nesta mise-en-scene do filme é a da investigação dos policiais fora do prédio, onde fica claro que a falta de atenção é a principal característica presente, ou seja, a tendência era mesmo ele ser inocentado. ou seja, não acho que seja uma intervenção dos deuses que o salve (isso era o mais provável mesmo), é uma intervenção do Deus-Allen que o coloca contra a parede naquele diário e aquele inspetor seríssimo (dois Deus ex-machina falsos), que ele coloca ali só pra brincar de acharmos que o fim é sim o da pré-determinação moral, quando no fundo não é nada disso (ou nas palavras do outro policial: "não estamos aqui pra fazer julgamentos morais, e sim pra investigar um crime").

tudo isso, junto, me divertiu às pampas, porque achei o filme mais efetivamente engraçado do Allen em tempos, inclusive com um humor quase inglês mesmo.
(sem falar do retrato da vida dos ricos, que me parece o mais deliciosamente plausível que eu já vi - nem judgemental, nem defensor).

 

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