Queimando Filme

O crítico de cinema Cléber Eduardo usa a primeira pessoa

Sunday, February 19, 2006

Take 2 - Na Boca da Noite - Walter Lima Junior


Nunca tinha visto Na Boca da Noite (1970, foto de Ruben Correia), de Walter Lima Junior, filme do qual sabia apenas informações de produção, como a filmagem em poucos dias, em 16mm, com recursos precários, em um momento de asfixia política no país, sob a nuvem negra do AI-5. O Cinema Novo não pautava mais sozinho as formas de representação da reação ao momento histórico. Tinha a companhia de um primo avacalhado, anárquico, apelidado de Cinema Marginal, que não tinha projetos ou utopias, apenas sarcasmo e um ceticismo histriônico. A potência da descrença, se é possível falar assim. Na Boca da Noite não ficou imune a essa vertente mais desconjuntada. Passou no domingo 19, sessão Cult, do Canal Brasil, apresentada por Leonna Cavali (xi, não confiro grafia nenhuma aqui, é território do erro)

Lima Junior é um cineasta sempre preocupado com a imagem, em como usá-la para criar certos efeitos e construir universos específicos (Ele, o Boto, A Ostra e O Vento), sem o compromisso limitador com o realismo. Uma primeira mirada para os extensos planos sequências do filme e para as atuações com todo jeito de laboratório de improvisação, de Rubens Correia e Ivan de Albuquerque (já protagonistas da montagem carioca da peça de Zé Vicente, matéria-prima adaptada pelo roteiro do filme), demonstra a disposição de recusar os códigos de verossimilhança e afirmar uma assinatura estilística, autoral, com a exacerbação da mise en scéne como forma de revelar o artíficio usado para tornar as cenas sufocantes justamente por conta de seu esvaziamento dramático.

O desleixo das atuações, no caso, são conceituais, isso é evidente. Assim como a coreografia nem sempre bem ensaiada da câmera. É perceptível a proximidade com Câncer (Glauber Rocha, 1966), não apenas por conta da política do plano-sequência e da improvisação, mas também pelo grau de desbunde em seu discursivismo político, embora, em Na Boca da Noite, não haja nem sombra do vociferante sarcasmo glauberiano. Na relação comercial e de poder que se estabelece entre um bancário e um faxineiro, com a conscientização e as intenções revolucionárias do dominador reproduzindo a dominação contra a qual parece estar se inssurgindo, Walter Lima Jr acentua o caráter de impasse de sua própria classe social e de sua condição de cineasta, escancarando a questão da manipulação de uma classe pela outra (de imagem de classe, no caso dos cineastas).

Tanto o formalismo com sede experimental dos planos sequências como o discursivismo de síntese de relação de classe está sempre ameaçando asfixiar a potência da própria forma proposta. Conceitos e intenções, quando articulados em sons e imagens, não necessariamente surtem efeito (por mais que, nesse caso, o critério seja pessoal, o de estabelecer o que, em última instância, surte ou não efeito).

Na Boca da Noite foi filmado em 1970 e só lançado em 1973, revelando que a precariedade, presente na imagem reveladora de sua produção, extendia-se à exibição, sempre exilando os filmes da casa e deixando-os do lado de fora da porta. É um filme ensaio, característica que, "estimulada" pela falta de estrutura de sua produção, é sua potência, mas também seu limite.

7 Comments:

At 11:11 AM, Blogger Leonardo Mecchi said...

Grande Cléber! Bem vindo ao universo blogueiro...

Sobre teus textos: você levanta o fato de "Na Boca da Noite" ter sido filmado em 70 e lançado apenas em 73. Se você pensar que "Signo do Caos" foi premiado em Brasília ainda em 2003 e só foi (mal e porcamente) lançado no final de 2005 vemos que pouca coisa mudou.

Quanto ao cinema nórdico, você acha justo colocar Lars Von Trier na mesma sentença que Sjostrom, Dreyer e Bergman? Veja bem, não que eu não goste de Trier, mas acho que é injusto com ele a equiparação.

Aguardo ansiosamente as próximas postagens, e o processo de libertação da primeira pessoa...

 
At 11:27 AM, Blogger Cléber Eduardo said...

Leonardo, a associação de Dreyer com Bergman, Sjostrom e Lars Von Trier é apenas para se reforçar a idéia de uma tendência cultural entre os cineastas escandinavos - entre os dramatugos e escritores também - de trabalhar na representação da situação-limítrofe, na visualização da vida como espaço de sofrimento e de resistência a esse sofrimento. A diferença está em como cada um propõe um olhar diferente para essa aproximação. O do Dreyer, por exemplo, me parece mais próximo, no sentido de solidário, do que o do Von Trier. E o sofrimento de seus personagens, os de Dreyer, são menos da condição inerene ao homem, como em Bergman, e mais da adaptação do homem à cultura de seu espaço (com todas as proibições e cerceamentos aos desejos individuais dessas configurações centradas no peso da tradição e dos rituais). Enfim, citei todos eles mais como reforço de uma idéia de cultura a qual eles todos estão atrelados, sem hierarquias ou comparações mais amplas. Agora, usando a primeira pessoa, sou mais admirador, de todos eles, do Dreyer, talvez junto com o Sjostrom, embora, a título de confessionário, Bergman foi o primeiro cineasta pelo qual me interessei enquanto autor, depois de ver Gritos e Sussurros.

 
At 3:09 PM, Blogger Sérgio Alpendre said...

bem, isso significa que é mais um tempo que perderei lendo blogues. justo de quem eu menos esperava. vai falar dos exageros etílicos sujinhísticos por aqui?

 
At 10:39 AM, Blogger Leonardo Mecchi said...

Bergman também foi meu primeiro cineasta-autor (mas por "O Sétimo Selo"), juntamente com Godard, por "Acossado".

 
At 12:07 PM, Blogger Sérgio Alpendre said...

deu duro, tome um dreyer...

ok, essa foi triste, mas eu tinha de fazer

 
At 1:09 PM, Blogger Leonardo Mecchi said...

Perco a moral mas não perco a piada, né Alpendre?

Só não dá pra dizer que desce macio e reanima...

 
At 5:33 PM, Blogger Sérgio Alpendre said...

eu tb não curti não. vi na cinemateca. me pareceu que a tosqueira disfarçava o desinteresse do lima jr, ou o que parecia ser um desinteresse, uma insegurança, que seja.

 

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