Queimando Filme

O crítico de cinema Cléber Eduardo usa a primeira pessoa

Sunday, February 19, 2006

Take 1

CARL DRYER
A primeira pessoa. Ao lado, a terceira, Ele, o Cristo, ou melhor, Johannes, que se acha Cristo em Ordet, a obra-orima do dinamarquês Carl Dreyer. Como nunca, até segundos atrás, a primeira pessoa. Palavras de vertigem, idéias à deriva, dúvidas travestidas de convicção, queimando certezas, incendiando questões. Sensação de aventura. A fluência não quer pegar de primeira, travas quaisquer ensaboam os teclados para o sentido das teclas escorregar, uma incerteza de primeira vez.

Três filmes de Carl Dreyer em um domingo. Dias de Ira, Ordet e Gertrude. Dryer coloca o drama em voltagem alta, mesmo nas mais gélidas de suas narrativas, porque não dramatiza apenas momentos chaves, mas cada partícula de seus filmes.
São dramas maísculos, limítrofes, que arruinam vidas, sacodem certezas e ilusões, dão rasteira em personagens. O cineasta é dinamarquês como Lars Von Trier e, sim, Lars Von Trier é devedor de Carl Dreyer, mas sem o mesmo senso do fantástico, do espiritual, da abstração, com exceção feita a Ondas do Destino.

Dreyer também não tem o cinismo e o sarcasmo de Lars Von Trier, demonstrando, em cada uma de suas imagens, uma crença aguda no universo criado por suas opções como diretor. Dreyer jamais está contra seus personagens, mas com eles, solidário a eles, mesmo em momentos de fúria da vida contra esses seres.

É impressionante como esses escandinavos parecem culturalmente vocacionados para filmar a dor humana no fio da navalha. Sjostrom, Dreyer, Bergman, Von Trier. Não dosam o sofrimento imposto aos personagens. No entanto, quando, em alguns desses filmes, ao final dos machucados épicos no tecido de emoções, o humano resiste, supera os obstáculos da sociedade e do acaso (ou da natureza), demonstrando, no final das contas, um saldo de superação.

Dreyer filmou de 1917 a 1964. Seus filmes silenciosos (A Quarta Aliança da Senhora Margarida e Mikael) são mais ou menos próximos, com um casal de jovens, nos dois casos, tendo de enganar alguém mais velho (um senhora viúva no primeiro, um pintor no segundo), que, em sua trajetória, simboliza o obstáculo para a satisfação do desejo carnal e das demandas afetivas. Nos dois casos, os mais velhos são arquivados, não sem deixar suas marcas e ensinamentos por meio da culpada tomada de consciência dos jovens, mas predomina a aguda ciência da vida como cilo, como percurso que, em um dado tempo ou em dada circunstância, é finalizado cruelmente.
Com uma brilhante e perturbada dinâmica de câmera e de cortes, que flertam com vanguardismos de enquadramento e encadeamento na parte final, O Processo de Joana D`arc (1927) introduz a mitificação da crença no sagrado, naquilo que não se vê, mas que se sente e que se acredita como poder transformador. A questão é retomada em Ordet (1964), meu filme preferido de Dreyer, em que, no lugar de Joanna, temos Johannes, um ex-estudante de teologia que, durante uma crise de fé, passou a ser achar a reincorporação de Cristo. Dreyer filma em longos planos sequências e, mais uma vez, um obstáculo da "sociedade" atravessa o caminho de um casal de jovens. Nesse caso, a religião. A conciliação virá com uma morte e, após essa luz redentora das trevas, um milagre, o maior deles, premia a conciliação e a fé no impossível, já que a fé no provável, para Johannes, é uma fé indiferente.
Os planos-sequências também são longuíssimos em Gertrude, filme com atuações sorumbáticas, planejadamente esvaziadas de emoção, algo ainda mais estranho por, paradoxalmente, a protagonista falar parte do tempo em paixão. Gertrude é, junto com o Vampiro (experiência no fantástico mais rasgado, com sinais expressionistas e de vanguardas dos anos 20), a obra em que Carl Dreyer, sem abrir mão de seu percurso narrativo, mais estetiza o enquadramento. Se em O Vampiro essa estetização, de dinâmica mais espetacular, se dá no impacto da mise en scéne, na composição evidenciada como tal e em passagens de dinamismo na fluência dos planos, em Gertrude, sem deixair de compor os planos, Dreyer opta por uma encenação de um rigor pesado, desvinculado do cinema de seu momento (1964), quase um ET em sua dinâmica. Quem nada conhece que inspire-se a ir atrás. Quem conhece, suponho, sentiu a força de Dreyer.

Primeiro pessoa ainda está parcimoniosa

2 Comments:

At 9:12 AM, Blogger Felipe Fonseca said...

De Dryer, vi apenas "A palavra" que, lendo o post, descobri tratar-se de tradução do título original "Ordet" ali mencionado. Achei o filme excelente, o que me deixou com vontade de assistir a outros títulos. A temática e a forma de a conduzir fazem o espectador grudar os olhos na tela. O diretor parece extrair o máximo de significação em cada tomada e o final é imprevisível e instigante. Vale a penaa!

 
At 9:13 AM, Blogger Felipe Fonseca said...

De Dryer, vi apenas "A palavra" que, lendo o post, descobri tratar-se de tradução do título original "Ordet" ali mencionado. Achei o filme excelente, o que me deixou com vontade de assistir a outros títulos. A temática e a forma de a conduzir fazem o espectador grudar os olhos na tela. O diretor parece extrair o máximo de significação em cada tomada e o final é imprevisível e instigante. Vale a penaa!

 

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