As Meninas de Sandra e O Corte de Gavras
Não se passou nem uma semana desde que vi o filme mais recente de Costa-Gavras. Cortei do HD, sem sequer esforçar-me. Mas faço aqui um esforço de reconstituição, se não das imagens, ao menos de minhas palavras em comentários para amigos. Injustiça brava, já me acuso. Tentar restituir idéias e impressões, não o filme, é uma operação pouco rigorosa. Mas há quem defenda, entre os quais um muito admirado crítico de cinema brasileiro, que o importante é o que se retém, não o que está na tela. E a escrita seria uma forma de reter racionalmente o que primeiro se reteve em sensações e pensamentos não formatados em linguagem estruturada. Escrever seria estruturar a memória do filme (não o filme).
Toda essa enrolação pseudo-cerebral para dizer que tentarei lembrar de O Corte, do Costa (infelizmente, não o Pedro), escrevendo o que retive de suas imagens (não necessariamente retive as imagens, mas sim a relação com elas). Bem, primeiro tive a forte impressão de que o Costa é um dos diretores do Telecurso Pré-Mobral, porque, para mostrar que ele está fazendo uma comédia em sintonia com as questões político-sociais de seu tempo, põe todos os personagens para falar o tempo todo sobre o tema do filme (o desemprego e seus efeitos).
Tudo bem que o Costa propõe-se, o que é direito dele, a exacerbar o que tematiza, sobretudo no tipo de representação e de construção do personagem (anedótico), sem preocupaçãocom um pacto completo com a crença na ficção, porque essa exacerbação cômica carrega nela alguma referencialidade, uma seta indicativa a nos fazer notar que ele está fazendo uma paródia ácida de um dado de seu tempo.
Mas a gravidade política da situação é diluída pela psicopatização do personagem, que se torna uma imagem mais de maluco que de reação a um contexto do qual é vítima (problema parecido com o de A Agenda, de Laurent Cantet. E dilui-se ainda mais por situar essa crise social em um segmento muito específico, o dos altos executivos europeus da indústria de papel, que sobrevivem à crise sem perder sinais de equilíbrio econômico (carros, casas, roupas).
Costa torna-se aqui então um cineasta do CPC fazendo pedagogia cínica sobre o colapso da elite assalariada. Estaria regozigando-se com a decadência dos burgueses contemporâneos ou se solidarizando com eles por serem sua última "causa" humanista-política?
Ainda na linha cinema sintonizado com uma questão social de seu tempo, Meninas, de Sandra Werneck, não está interessada em decadência, mas em mais um efeito de consolidação de uma estratificiação de classes (com tudo o que isso representa de crise comportamental, tanto em matéria de "organização famíliar como em relação a perspectivas de futuro). Temos a favela como espaço onde se situa os conflitos que se filme está "denunciando" em forma de documentário. Seu objeto são quatro adolescentes grávidas. Duas do mesmo pai. Falam as garotas, as mães, os pais , delas e dos filhos delas. Imagens das casas, das ruas, das vistas de cima, do "ambiente favela".
Sandra fala pouco e não têm imagem. Percebe-se o empenho em interferir sem excessos, captando sim "depoimentos", mas, sobretudo, procurando observar situações domésticas, de tensão principalmente (entre mães e filhas), embora só raramente consiga superar o efeito de "autenticidade e intimidade simulada para a câmera e com alta consciência dela". Temos então mais uma representação da vida privada formatada principalmente pelos "atores-personagens-entrevistados", que fingem uma intimidade impossível diante da lente. Temos assim um híbrido de interativo com observacional, sem o rigor de não interferência direta de Justiça, de Maria Augusta Ramos.
Minha principal resistência ao filme é em relação à estrutura narrativa, em forma de painel de casos específicos cuja soma esboça um dianóstico geral. Não se constrói espaços de individualidades (abortados pelo ritmo retalhado), tampouco especula-se sobre razões para seu diagnóstico empenhado na neutralidade. Tem-se assim uma denúncia sem culpados, à moda de Ônibus 174, ou mesmo de Falcões - Meninos do Tráfico, que fazem revelações sem localizar causas concretas (complexas que sejam).
Meninas parece disposto a apenas mostrar uma situação, com mais proximidade que uma reportagem telejornalística, mas sem a organização da realidade tão característica da televisão. Mas apenas mostrar três meninas e suas vidas, aos fragmentos, só têm sentido se nós formos introduzidos nessas vidas pelo filme, não apenas colocados para passar em frente delas, sem nos deter em nenhuma para compartilharmos uma experiência ou sermos verdadeiramente incomodados com a proximidade dessa realidade.
Mais sobre o filme em Cinética (dia 10 de maio)